Passar no vestibular é o grande sonho de muitos jovens e adolescentes que terminam o ensino médio, porém, muitos desistem de tentar por achar que não conseguirão ser aprovados. Muitos por falta de condições de econômico-financeiras sequer se inscrevem. Entretanto, alguns superam todas as adversidades e conseguem se destacar dentre tantos outros com melhores condições econômicas e sociais.
Como
explicar isso?
Higor é negro, mora em um bairro popular da zona sul de São Paulo e estudou toda a vida em escola pública. Comemora, agora, o primeiro lugar em direito na Fundação Getulio Vargas (FGV). Mariana, criada em uma pequena cidade do sul de Minas, não entrou para a universidade de primeira. Não podia pagar pelo ensino superior privado, então tentou o vestibular de novo e, neste ano, conquistou incríveis nove aprovações para medicina em instituições públicas de ponta. Ornaldo é indígena e acaba de chegar a São Paulo. Ele, que veio do Acre, é o mais novo aluno de medicina da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Mais do que superar dezenas de candidatos e conquistar uma vaga em instituições e cursos concorridíssimos, esses jovens têm outra característica que os une: para chegar lá, tiveram de vencer adversidades muito maiores do que os exames. Com boa parte ou toda a vida escolar na educação pública, são a prova de que brilho individual é peça importante para superar a precariedade do ensino brasileiro.
De
acordo com o cientista social Juarez Dayrell, coordenador do Observatório da
Juventude da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), “antes, uma série de
alunos de escola pública com grande potencial não chegava à academia por achar
que não conseguiria passar no vestibular”, porém, isso mudou.
“Na última década
houve uma transformação de imaginário que colocou na ordem do dia das camadas
populares o desejo de ir à universidade”, considera Dayrell, que observou essa
tendência em uma pesquisa recente com 245 jovens do ensino médio público
paraense. Quando
chegam lá, mais que simples alunos, esses jovens muitas vezes se tornam
propulsores de mudança dentro das instituições.
Para
Paulo Bareicha, professor da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília,
“as escolas, em especial as públicas, trabalham para prevenir e combater o
fracasso escolar, mas pouco se fala em sucesso, e em ensino individualizado,
atento às necessidades e aos ritmos individuais”. O resultado disso, explica, é
a falta de incentivo à germinação de potenciais. “A padronização oculta o
prodígio. Os diferentes são excluídos, para o bem ou para o mal, mas,
principalmente, para o mal”, diz.
Se ainda
não há medidas enfáticas dentro do ensino público para tratar essa falha,
outros setores já esboçam alguma reação. Isso pode ser visto nas iniciativas
privadas que buscam investir nesses prodígios. Uma delas é o Instituto Social
Para Motivar, Apoiar e Reconhecer Talentos (Ismart), que desde 2004 identifica
e prepara estudantes de baixa renda no Rio de Janeiro e em São Paulo para o
ensino superior. Quem é selecionado, faz um cursinho preparatório e depois
realiza o “vestibulinho” de colégios particulares. Se aprovado, ganha uma das
180 bolsas ofertadas a cada ano. O formato pode não ser o mais adequado – deixa
muita gente de fora e não mexe no principal, que é a necessidade de se
reformular a educação básica pública brasileira –, mas é um paliativo que ajuda
jovens que não podem esperar pela reforma educacional.
Por
muito tempo, creditou-se o desempenho elevado apenas à inteligência. Por isso,
no início do século passado o professor francês Alfred Binet anunciou, em meio
a muita expectativa, a criação de um teste para medir o quoeficiente de
inteligência (QI). A prova foi largamente usada pelo governo francês, na ilusão
de que, uma vez identificadas as crianças de QI elevado, se poderia formar uma
nata de intelectuais. Hoje sabe-se que não é assim tão simples.
Em
entrevista recente à Revista ISTOÉ, Shriley Malcom, diretora da Associação
Americana para o Avanço da Ciência, afirmou que “uma pessoa com inteligência
enorme, mas que não se empenha nos estudos vai se sair pior que alguém nem tão
inteligente, mas que se dedica muito”. Assim como apenas a inteligência não
explica os prodígios, a escola, sozinha, também não pode ser considerada o
fator determinante. Embora o espaço escolar, incluindo-se aí a infraestrutura e
a qualidade dos professores, seja muito importante, ele não age isoladamente, o
que fica claro na história de Higor, que estudou num colégio público mediano,
mas sempre foi um excelente aluno.
Para o pesquisador
inglês Nigel Brooke, professor convidado da Faculdade de Educação da
Universidade Federal de Minas Gerais, “a escola pode muito, mas ela não pode
tudo. Quando você avalia a variação de desempenho entre estudantes, é possível
explicar 20% dessa oscilação por causa da diferença da qualidade das
instituições, mas os outros 80% vêm de fora delas. Fora dos muros do colégio,
um dos fatores mais importantes é o suporte familiar.
Em suas pesquisas, Kathleen Hoover-Dempsey, do departamento de psicologia e desenvolvimento humano da Universidade de Vanderbilt, nos Estados Unidos, percebeu que há três eixos principais por meio dos quais essa influência da família se dá. “Os pais apresentam à criança as justificativas para a importância de se ir à escola. São também eles que dão suporte ao aprendizado dentro de casa. Por último, eles podem se engajar na comunidade escolar – seja em atividades de voluntariado, seja em acompanhamento da gestão da instituição.
Claro
que não se pode esquecer ainda de uma boa pitada de resiliência, comum à
trajetória desses superalunos. Acostumados a lidar com dificuldades, eles
acabam criando estratégias para superá-las. “Alguma adversidade, desde que não
seja em níveis altos, tem impacto psicológico positivo”, garante o psicólogo
Mark Seery, da Universidade de Buffalo, nos EUA. O pesquisador estudou como
situações adversas interferiram na vida de 2.398 voluntários e publicou, em
2010, uma pesquisa que trazia a conclusão já no título: “Aquilo que não nos
mata, nos fortalece.” Isso fica evidente na vida desses jovens.
É
preciso mais ousadia para reconhecer e valorizar esses talentos. “Temos metas
muito tímidas na educação. Isso mostra uma falta de crença em nosso potencial,
como se nossos alunos tivessem limitações para aprender, o que não é verdade”,
avalia Inês Kisil Miskalo, coordenadora de educação formal do Instituto Ayrton
Senna, organização que trabalha com a melhoria das escolas públicas do País.
Para Inês, a mudança no imaginário das camadas populares é importante, mas
precisa vir acompanhada por um fortalecimento das escolas – principalmente para
que esses alunos não sejam obrigados a ir buscar em instituições particulares o
que deveria ser ofertado pelo governo. Do contrário, seguiremos com o peso de
sermos uma das dez economias do globo, mas com a educação figurando entre as
piores do planeta.
Fonte: Revista ISTOÉ, março de 2012.
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